sábado, 10 de fevereiro de 2007

Um pouco de história...

Retirado de:
VIDAL, Prof. Artur N., Fermentelos, ed. de autor, Águeda, 1938

Há nesta rua (Rua do Canto) ... e uma sociedade de recreio, a "Filarmónica Velha de Fermentelos", que o público conhece por "Música da Rambóia".

Vou contar-te a história das músicas de Fermentelos. Presta atenção.

Foi sempre Fermentelos amigo dos sons musicais, agradáveis ao ouvido; e, desde que me lembro, ainda mesmo quando éramos poucos casais, aqui houve divertimentos conforme a época em que se vivia.

Em 1868, quando o teu tio padre Alexandre (Alexandre Moreira da Silva Vidal, fundador da Banda Marcial de fermentelos) para cá veio, havia aqui um concerto que então se chamava "Ramalda", composto de violas, harmónios, clarinetes, cornetins e bonecos dançantes.

O teu tio disse aos rapazes que era melhor eles formarem uma música e deixarem a "Ramalda".

Os rapazes entusiamaram-se e prepararam-se para formar a música, indo regê-los o teu tio. Mas este sai de Fermentelos por a igreja ter sido dada a outro padre. Foi um desgosto.

Os rapazes, porém, não desanimam e conseguem que o teu tio para cá venha, como capelão, em janeiro seguinte, 1869.

Mas o instrumental? Como adquiri-lo?
Aparece logo o tio materno do teu pai, Jacinto da Calva, que o compra todo à sua custa.
Chegados os instrumentos, o teu tio, padre Alexandre, distribui-os pelos rapazes como entendeu e ensinou-lhes a escala. Passados dias, pediu ao irmão Francisco, teu tio também e farmacêutico no Couto de Cucujães, que viesse aqui ensinar-lhes a primeira peça.

Os ensaios eram feitos debaixo de uma ramada, à porta da habitação do teu tiu padre, à Rua da Igreja.
Teu tio Francisco veio e ensinou-lhes um ordinário, lindo, tão lindo como outro assim ainda não ouvi!
E os ensaios continuaram debaixo da tal ramadinha, ora por um ora por outro dos teus tios.
Os rapazes arranjaram depois para ensaio a casa do José Nicolau da Rosa, da Rua do Lugar.
Teu tio padre, como de novo nos tivesse de abandonar, consegue, por intermédio do Dr. José Pais dos Santos Graça, que então aqui residia, que o José Fernandes Galucho, de Vagos, viesse ensaiar a Banda e Luís Pinto, também de vagos, a orquestra.

Estreou-se a música numa festividade em Óis da Ribeira, em 13 de Junho de 1870. Gente válida não ficou nenhuma, nesse dia em Fermentelos. Todos os que puderam, acompanharam lá a música.
Que entusiasmo! Que alegria!
Nesse dia - parece que a estou a ver! - era assim composta a nossa música:

Requinta - António Lemos;

Clarinetes - António Fernandes Rosálio Júnior, João Silva, João Ferreira Raposo, José Vital e João Rodrigues Pepino;

Cornetins - José Silva, José Francisco, João Pereira Raposo, José Costa Sapateiro e João Canhoto;

Bombardinos - António Cartaxo e José Ildefonso Evangelho;

Trombones - Inácio António Brigeiro, Sebastião José Pinto de Miranda e António da Quintã, de Oiã;

Trompas - Manuel Duarte, de Oiã, e Joaquim Loureiro, também de Oiã;

Contrabaixo - José Saraiva e José Pataco;

Caixas - António Basílio Sénior e José Carlos Dias;

Pratos - Joaquim Raposo;

Bombo - José Dias Quaresma.

Vem a festa da Senhora da Saúde e a nossa música vai tocar, em certame, como hoje se diz, com a música de Águeda. Estes vinham todos vaidosos, com farda nova, muito garrida, que nessa ocasião lhes tinha dado o Conde da Borralha. Os nossos rapazes, ao verem aquilo, esmoreceram, e o regente Galucho, para os animar, grita-lhes:

- "Coragem, rapazes, e para a frente! Quem toca são as gaitas e não a farda".

Os rapazes, realmente animaram-se a ponto de os de Águeda, se não "levarem que contar para Ílhavo", levaram que contar para lá.

O Jacinto Calva, como teve o gesto nobre de comprar o instrumental, exige que os rapazes sejam todos do seu partido. A isto se opõe a gente do outro partido.

O Jacinto, desgostoso e arreliado, tira os instrumentos à m´suica. Logo um grupo se formou composto do padre José Dias Urbano, do teu avô, Francisco Tomás nunes, João Nunes Condesso, António Marques da Costa, João Tomás Dias Antão e José Agostinho, que se cotizam e compram novo instrumental aos rapazes, dizendo-lhes que fosse cada um do partido que entendesse.

Como o regente Galucho deixasse a música, ficou a regê-la, dentro e fora, o Luís Pinto.
Pouco depois, com a saída deste, regeu a nossa música José Luís Rodrigues de Almeida, de Águeda, e um Lemos, do Porto.
Com a saída destes, asumiu a regência, em 1874, José Maria Ganário, de Águeda, que nada percebia de música de igreja.
O Figueiredo de Sarrazola, que para aqui tinha vindo nessa época, um dos ascendentes maternos do João de Figueiredo Urbano, contrata o estudante da sua terra, manuel José de Oliveira, para reger a nossa música, numas endoenças de Sangalhos em 1875.
Em 1877, tendo o Manuel José de Oliveira sido nomeado professor de Oiã, assume a regência da nossa música dentro e fora da igreja.
Em 1887, uma comissão presidida pelo Dr. Joaquim Pedro Nolasco e secretariada pelo Joaquim Ferrão Morais, adquire para a nossa música a actual bandeira da Música Velha.
Em 1899, deixou o Manuel José de Oliveira a regência, de fora, da nossa música e confiou-a a seu filho, o maestro José de Oliveira Pinto de Sousa, professor do Troviscal, ficando ele com a regência da música de igreja.
Em 1909, por umas desinteligências num arraial de Oiã, entre os rapazes de lá e os de cá, abandonaram os Oliveiras a regência da nossa música, fundando logo o José de Oliveira Pinto de Sousa a já célebre música do Troviscal que tão falada tem sido em todo o Portugal.

Durante a regência dos Oliveiras, esteve o ensaio da música na Rua do Lugar, nas casas do José Nicolau da Rosa, passando depois para a rua da Subida, ao Picaró, nas casas que foram de Sebastião Dias Antão, a seguir para a Rua da Igreja, nas casas onde tu nasceste, à igreja, e que nessa altura pertenciam ao teu avô, Francisco Tomá Nunes, depois para a Rua do Versal, nas casas do João Ferrão, mais tarde para a Rua do Cabeço da Igreja, nas casas do José António Pepino, depois novamente para a Rua da Igreja, mas ao Cruzeiro, nas casas que hoje são da tua irmã, D. Maria Ausenda, e por último, na mesma rua também ao Cruzeiro, numas casas onde hoje habita José Duarte Dias.

Em 1905, e, por isso, na regência dos Oliveiras, esteve a música para findar, por uma questão que no seu seio se levantou. A música vinha atravessando uma crise medonha por falta de executantes, bastando dizer que durante esse Verão eram apenas 18 sócios executantes, contando os três da pancadaria. O José de Oliveira ensinou 10 rapazes e meteu-os na música a tocar. Entre eles estava o José Rodrigues Pepino, "o José Serralheiro", como nós o conhecemos, a tocar contrabaixo, executando logo ele com perfeição todos os seus papéis. A Direcção da música, sem que tal lhe fosse pedido, passou o Serralheiro a receber parte inteira e deixou ficar os 9 restantes a meia parte. Estava a questão levantada com adeptos quer de um lado quer do outro. Ou parte inteira a todos ou meia parte ao Serralheiro.
Este declara que isso é com o seu pai.
A Direcção fala com o pai dele e ouve a seguinte resposta: "se deram a parte inteira a meu filho, sem que ninguém a pedisse, é porque entenderam que o rapaz a merecia; se agora lha retiram, é porque entendem que o rapaz não tem progredido, é fraco, e por isso, se é músico fraco e caminha para trás, sai já da música".
E não houve maneira de lhe mudar a opinião.
Dentro da música formaram-se logo dois grupos pró e contra o Zé Serralheiro, estando assente fazer-se uma festa em Vilarinho ou Óis do Bairro e despedirem-se todas as outras, acabando a música. E assim morria uma sociedade musical com 36 anos de existência.

Nessa ocasião eras tu eras tu, não sócio da música, mas um apaixonado que a acompanhava em todas as festividades, tocando flautim. Soubeste o que se estava passando, chamaste o Zé Serralheiro na tal festividade, de lado, e disseste-lhe: "Vosê diz aos músicos que o seu pai cedeu e, por isso, que passa a ganhar meia parte, e ao seu pai diz que os músicos resolveram manter-lhe a parte inteira e eu pago do meu bolso a outra meia parte para assim você poder entregar em sua casa a totalidade de cada festa".
O Serralheiro esboçou um gesto de repulsa; mas tu, sem lhe dar tempo de ele falar, voltaste-te para toda a sociedade dizendo: "è verdade! Já me esquecia de vos dizer que ontem resolvi com o pai do Zé Serralheiro a este ganhar só meia parte, com a condição de ninguém mais lhe falar no caso".
Os músicos ficaram satisfeitíssimos com a solução do conflito. E, masi tarde, quando souberam que eras tu quem pagava a meia parte, passaram logo os 10 músicos novos para parte inteira.

Saindo os Oliveiras, em 1909, os rapazes da música foram a Coimbra e conseguiram que viesse o contramestre, hoje subchefe, da música do 23, cá ensaiá-los. Passado pouco tempo, contrataram outro músico militar, também de Coimbra, que os veio reger e dirigir.
Não demorou por cá muito tempo o 2.º músico militar de Coimbra; e o músico Fermentelense, João Lourenço Dias, para que a música não acabasse, tomou a direcção da mesma até que se conseguisse um regente para ela.
No dia 1.º de Novembro de 1911, tomas tu posse da nossa Escola masculina e os rapazes da música vão convidar-te a regê-los.

- Agora eu, amigo André.

Eu aceito, ensaio uns ordinários novos e faço, ou assisto, à primeira função e vejo que eram quase tantos os adidos como os sócios. Formo logo o propósito de acabar com os adidos da música - verdadeiros sugadores do suor dos executantes. Começo a ensinar todo o mundo a cantar e a tocar violino, pois era nisto que os tais meninos assentaram arraiais, e passo a tocar 1.º violino!
Tentei ainda que os adidos ingressassem na Banda a executar fosse que instrumento fosse. Eles não quiseram e eu nunca mais os convidei!

No princípio do ano seguinte, 1912, vem do Brasil o Luís Ferreira Abrantes, um músico na verdadeira acepção da palavra. Este era o regente que convinha à nossa música. Vou ter com ele e peço-lhe que reja os rapazes. Ele esquiva-se e eu explico-lhe então. "eu posso demorar-me um ano ou pouco mais, aqui em Fermentelos, pois assim que aposentem meu pai, que está na inactividade como professor em Cedrim, em virtude de ter trocado comigo, saio daqui. Ora nessa altura estará você novamente no Brasil e os rapazes ficam sem regente, sendo muito provável que, por isso, a música acabe. Tomando você conta da música agora, por aqui se conserva e ela não findará".
O Luís aceitou e eu nesse dia fui ao ensaio apresentá-lo como novo regente da nossa música.

Agora podes continuar

Em 1922 o Luís Abrantes resolveu ir com a família para o Brasil e propõe para ficar a reger amúsica seu mano Manuel Ferreira Abrantes. Porém, alguns músicos, metade deles, talvez, preferem que os fique a reger o Jeremias Pires Brigeiro, da Rua da Subida.

Deu-se então a cisão na música de Fermentelos, resultando dela as nossas actuais duas músicas: Música da Rambóia e Música da Pinha, ou melhor, e como são conhecidas fora daqui, Música Velha e Música Nova.

Os músicos da Música Nova ficaram sem instrumental. Foram a Cedrim, o Jeremias, José Fernandes Rosálio e João Lourenço Dias e tu emprestaste-lhes, sem prazo, todo o instrumental da tua dissolvida música. Os homens vêm radiantes, reunem músicos velhos que já não andavam na música à falange Jeremias, e põem na rua, nesse dia, a tocar, a nova música, em marcha à "Flambeaux", com pinhas acesas. Daí o nome de Música da Pinha, sendo a sua primeira casa de ensaio numa sala pertencente ao Manuel Gomes Pires, na Rua do Cabeço, e o seu primeiro regente e único até hoje Jeremias Pires Brigeiro.

Pouco tempo depois, adquire a Música Nova, por subscrição pública entre os seus partidários, uma bandeira, passando o ensaio para as casas onde ainda hoje está, na Rua do Cabeço, pertencentes a Maria Nunes Duarte.

Manuel Ferreira Abrantes regeu durante alguns anos a música velha, passando depois a regência para o prof. Américo Dias Urbano e deste logo para António Lemos da Rosa, seu actual regente. Durante a regência do Manuel Abrantes construiu-se uma casa própria para ensaio, no Cabeço do Vale, à rua do Canto, em terreno de António de Aquino Pires.